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sexta-feira, 11 de março de 2016

Abrindo espaço (de Claudia Rankine)

Tradução: Fabiana Jardim

Abrindo espaço (Claudia Rankine).
(29 de julho-14 de Agosto de 2014; Script para Ficção Pública no Hammer Museum)

No trem, a mulher em pé te faz assumir que não há lugares livres. E, na verdade, há um. A mulher vai descer na próxima estação? Não, ao invés disso ela vai ficar em pé por todo o percurso até a Union Station.

O espaço próximo ao homem é a pausa numa conversa que você de repente está afobada para ocupar. Você pisa rapidamente sobre o medo da mulher, um medo que ela divide. Você a deixa ficar com ele.

O homem não te cumprimenta enquanto você se senta porque o homem sabe mais sobre o assento não ocupado do que você. Para ele, você imagina, é mais como respirar do que se perguntar; ele já teve que pensar tanto nisso que você não chamaria de pensamento.

Quando outro passageiro se levanta e a mulher em pé se senta, você dá uma olhadela para o homem. Ele está perscrutando a janela o que parece a escuridão.

Você se senta perto do homem no trem, no ônibus, no avião, na sala de espera, em todo lugar em que ele poderia estar abandonado. Você coloca seu corpo em proximidade a, adjacente a, ao lado de, no raio de.

Você não fala a não ser que falem com você e seu corpo fala ao espaço que você ocupa e você continua tentando preenche-lo a não ser que o espaço pertença ao corpo do homem próximo a você, não a você.

Aonde ele vai, o espaço o segue. Se o homem se levantasse antes da Union Station você seria simplesmente uma pessoa sentada num trem. Você pararia de se debater contra o assento não ocupado quando onde porque o espaço não perderá seu significado.

Você imagina se o homem falasse com você, ele diria, está tudo bem, eu estou bem, você não precisa sentar aqui. Você não precisa se sentar e você se senta e olha através dele para a escuridão pela qual o trem se move. Um túnel.

Entrementes a escuridão te permite olhar para ele. Ele sente que você o olha? Você suspeita que sim. O que essa suspeita significa? O que a suspeita produz?

O cinza-esverdeado macio do seu casaco de algodão toca a manga dele. Vocês estão ombro a ombro, ainda que em pé você se sentisse sob a sombra. Você senta para reparar quem de quem? Você apaga esse pensamento. E pode ser tarde demais para isso.

Pode ser muito tarde ou muito cedo para todo o sempre. O trem se move rápido demais para os seus olhos se ajustarem a qualquer coisa além do homem, a janela, o túnel azulejado, sua escuridão escorregadia. De vez em quando, uma luz branca cintila feito som fora de lugar.

Do outro lado do corredor trilhos sala porto mundo uma mulher pergunta ao homem nas fileiras da frente se ele se importaria de mudar de lugar. Ela quer sentar com sua filha ou filho. Você escuta mas não ouve. Você não pode enxergar.

É então que o homem ao seu lado se vira para você. E como se no interior da sua própria cabeça você consente que se qualquer um pedir que você se mude, você dirá a eles nós estamos viajando como família.

De: Claudia Rankine. Citizen: an American lyric. United Kingdom: Peguin, 2015, p.130-133.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Racismo de pais para filhos... Herança de família




Depoimento de uma amiga:

Nasci em 1960, “branca” (esse é o termo que se refere à minha cor na certidão de nascimento, porque minha mãe foi me registrar sem a presença do meu pai que, durante o meu nascimento, estava sem poder andar, com o pé quebrado). Porém, minhas irmãs não tiveram a “mesma sorte” (ouvimos isso muitas vezes) e nasceram “pardas”. Somos filhas de pai negro com descendência africana (bisneto de escravos aqui do Brasil) e de mãe branca com descendência europeia (filha de espanhol, neta de italiano e bisneta de alemão). Ele, o motorista que a levava para a escola. Ela, a “alemoa” (apelido de família), criada dentro das “prendas domésticas”, nunca para casar-se com um negro. O preconceito foi o “prêmio” que os dois receberam pela paixão que nasceu entre eles: os brancos não queriam um genro negro e os negros não queriam uma nora branca. Nesse contexto, o “casório” se deu quando ela tinha 16 e ele 24 anos. Ela com o uniforme da escola, depois de ter fugido com o meu pai e o juiz ter chamado meus avós maternos para convencê-los de que, diante do “Inês é morta”, o melhor seria assinar tudo e deixar que os dois seguissem a vida. Assim, meus pais vieram de Ribeirão Preto para São Paulo e aqui tiveram três filhas.Durante a infância, quando nossa mãe passeava conosco, muitas vezes perguntavam se ela cuidava das meninas para que a mãe pudesse trabalhar. O preconceito aparecia nas falas, na forma de racismo. Afinal, uma mocinha tão branquinha, de olhos “cor de mel”, não poderia ser mãe (nem tia) daquelas “mulatinhas”. Outra forma de preconceito, dava-se (nesse contexto da “babá”), na incredulidade de várias outras pessoas, se penalizando por uma moça branca “ter que ser” babá de crianças de origem negra. Certa vez, quando minha mãe tentou viajar sozinha conosco para Ribeirão Preto, mesmo apresentando as certidões de nascimento, só embarcou depois que meu pai foi até a rodoviária e “se mostrou”, provando ser o pai e não deixando dúvidas de que a mãe era nossa! Até hoje, quando saímos as quatro juntas, mães e filhas, ou quando estamos eu e minhas irmãs com os primos e tios do lado materno (todos loiros de olhos azuis) e nos tratamos pelo grau de parentesco, recebemos olhares “inquietos” e ouvimos perguntas ou “buxixos” preconceituosos, como se aquilo não fosse algo possível.
Hoje, quando meu pai sai com a neta branca e de olhos “cor de mel” (agora mais para o castanho) e ela o chama de “vovô”, percebemos que o preconceito já atingiu nossa sobrinha. Ela, tão pequena, nos questiona sobre os olhares e alguns ditos das pessoas, que repetem as mesmas perguntas ou palavras carregadas de incredulidade, vindas das suas heranças. Racismo sempre foi motivo de muita conversa em nossa família, para que a altivez seja nosso legado para os que virão e para que não nos sirva de muleta social. Também nos move para trabalharmos contra essa malfadada “herança”. Aqui em casa não somos brancos e nem negros. Somos negros e brancos num só corpo, numa só família e não há como vivermos e vermos isso de forma segregada.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Pesos e medidas

A execução de adolescentes no Rio e o vídeo do Unicef que ninguém viu

"Durante 95 segundos, três mães – três mães negras – falam sobre seus filhos. Sorrindo. “Eu nunca vi uma pessoa igual a ele”, diz a mãe de Hítalo Gabriel, de 12 anos. “Todos os dias ele falava pra mim: ‘Você é a melhor mãe do mundo, te amo'”. A mãe de Cristian, de 13 anos, lembra que ele praticava vários esportes, era brincalhão, difícil vê-lo de cara feia. Queria estudar e ser bombeiro, como o tio. “Ele trabalhava, com 17 anos já tinha emprego registrado”, conta a mãe de Christian. “Era um menino cheio de sonhos. Era o primeiro em matemática. Era o primeiro na minha vida”.
Os depoimentos fazem parte de uma campanha que o Unicef – o Fundo das Nações Unidas para a Infância – lançou no dia 20, o Dia da Consciência Negra. Nos 40 segundos finais do vídeo, as mães baixam a cabeça. Fecham os olhos. Choram. Enquanto isso lemos que, todos os dias, 28 crianças e adolescentes morrem assassinados no Brasil. E que a maioria são meninos negros, pobres e moradores da periferia. A mãe de Christian completa: “Ele já tinha namorada. Já tinha emprego. E eu só tinha ele”.
Em dez dias, o vídeo teve apenas 1.000 visualizações no YouTube. E por que tão pouca gente viu? Porque a imprensa não divulgou".

Relacionado:
Relatório da Anistia Internacional "Você matou meu filho!": homícidios cometidos pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

potências

- Projeto "Isto não é uma Mulata" discute representações da mulher negra
Mônica Santana: "Cada vez mais que leio, que estou entre mulheres negras, que me aprofundo na discussão, me sinto mais forte e menos fragilizada pelas rejeições e fortalecida num ambiente de cooperação. Tratar desses temas não é fácil, porque o âmbito do amor e da afetividade parece que não é penetrado pela sociedade e pela política – pelo menos nas nossas ilusões. E conversar com outras mulheres sobre isso, tanto pior com os homens, é muito difícil, pois as pessoas logo atribuem suas pontuações a questões como complexos, recalques – que são bem legítimos  diga de passagem. É sempre um exercício exaustivo, mas me disponho a conversar sobre. Acho que é muito poderoso podermos falar de amor, afetividade, solidão, numa perspectiva política".


- Liniker: "Sou negro, gay e pobre e tenho potência também"


"As músicas ficaram muito cênicas, assim como o arranjo e a interpretação. E aí estou de batom, de brincão… Eu me visto assim no meu dia a dia e sentia que precisava mostrar isso para o público, ser o mais transparente possível. Por que colocar uma calça jeans e uma camiseta e mostrar meu trabalho só com a voz? Meu corpo é um corpo político. Preciso mostrar para as pessoas o que estou passando. “Este é o Liniker, um cara pode usar um batom, turbante e cantar”. Isso não me distancia de nada. Sou um artista deste porte".

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

excertos de um diário de campo

1
Em um encontro de grupos independentes que trabalham com dança em espaços urbanos, houve uma discussão sobre racismo por conta de momentos antes se ter presenciado uma passeata de um grupo católico nomeado TFP (Tradição, Família e Propriedade). Desse modo o que foi questionado entre as pessoas presentes foi como haviam algumas pessoas negras nesse movimento sendo que historicamente esse é um grupo que defendem valores que oprimem principalmente essa população. A partir de então foram falados outros relatos:
Um deles foi o relato de uma  bailarina e coreógrafa de um dos grupos que contou sobre sua graduação em dança em uma faculdade particular. Disse que em sua turma havia uma mulher já mais velha que dizia que as meninas negras não podiam dançar ballet, pois não haviam princesas e fadas negras nas histórias e por esse motivo esse não seria o lugar para essas pessoas. Desacreditando no que havia escutado, ela disse com todas as letras para mulher que aquilo era racista e que ela não ousasse se quer lhe dirigir a palavra novamente. Tempos depois essa mulher desistiu do curso....

2
Em seu primeiro dia de estágio em uma escola pública no município de São Bernardo do Campo, uma garota branca de olhos claros chega a escola e é surpreendida por comentários dos alunos elogiando os seus olhos, sua aparência e que era uma rainha e lhe perguntaram até se era estrangeira. Dentre outros comentários, um deles foi essa pergunta:
Aluna: Prô você tem Iphone?
Estagiária: Não tenho. Por que?
Aluna: Porque toda pessoa bonita tem Iphone.

3
(Relato de uma memória partilhada durante um jantar)
Em meados da década de 70, um senhor que era um dos sócio de uma fábrica de moveis em São Bernardo do Campo em uma noite muito fria permitiu que uma família de pessoas negras que estavam desalojados passasse aquela noite na fábrica e também tratou de arrumar cobertores para que eles pudessem se aquecer. No entanto, essa família incendiou a fábrica, mas como o guarda percebeu a tempo foi possível apagar o fogo antes que se alastrasse por tudo. O guarda mandou embora a família e no dia seguinte falou para o senhor o que havia acontecido. Ele ficou bastante zangado e acabou alimentando um rancor pelas pessoas negras por conta dessa situação, generalizando todas as pessoas dessa cor por algo feito somente por algumas pessoas...

terça-feira, 15 de setembro de 2015

sábado, 12 de setembro de 2015

Sobre "Que horas ela volta?"

Dois posts:

Que horas ela volta e os sonhos da minha mãe para mim
"Embora bolsista do Prouni, eu só ingressei e permaneci na universidade porque dona Luzia sempre esteve na dianteira de minha vida, financeira ou emocionalmente. Porque ela me levava às 6h no ponto de ônibus para ir à escola técnica, nas ruas sem iluminação de Perus. E durante o ensino fundamental. E antes – até – quando, aos seis anos de idade, foi de sua camisa rosa que li a primeira palavra de minha vida – PA-KA-LO-LO – após ela brincar comigo de escolinha, ensinando-me as vogais.
Sei bem que muitas amigas de minha mãe não puderam estar presentes na vida de suas filhas como gostariam. Assim como Val no filme, para que tivessem uma vida melhor que a delas, essas mães – sempre doadoras de si próprias- abrem mão da maternidade com o coração nas mãos, mas com  o sonho de que suas crias serão maiores que elas puderam ser" (Jéssica Moreira).

- Eu fui a filha da doméstica que entrou na Universidade
"Eu fui a filha da doméstica que entrou na Universidade. Por muito tempo isso foi motivo de vergonha e angústia. Por muito tempo eu menti sobre o que minha mãe fazia e onde eu morava. Quando me perguntavam eu desconversava, já tinha decorado todo um texto a depender da ocasião: “ela vende roupas, ela traz coisas do Paraguai, ela vende cosméticos”.
Mentir passou a ser uma constante para negar a minha realidade e me afastar da pobreza e negritude. Eu não queria ser fracassada e nessa sociedade você aprende que não ter, não possuir é ser fracassado. Só não é ensinado o que foi tirado e sequestrado de você. [...]
Demorou para que eu compreendesse que meu sofrimento era fruto da desigualdade e não da incapacidade da minha mãe em me garantir uma vida confortável. Por muito tempo eu odiei minha mãe e tive repulsa da pessoa negra e pobre que ela era. Por muito tempo eu odiei minha mãe e tive repulsa da pessoa negra e pobre que ela era. Por muito tempo eu odiei minha mãe e tive repulsa da pessoa negra e pobre que ela era. Eu repito porque muitas foram as vezes em que eu fui violenta, arrogante e me envergonhei da mãe que eu tinha. Isso é o que uma sociedade desigual faz com seus oprimidos, filhos culpabilizarem suas mães por sua pobreza e miséria. Filhos odiarem suas mães por não darem conta ou compreenderem a desigualdade.
[...] Vocês, [meus] amigos, tem uma importante contribuição para aquilo que me envergonhava se tornasse orgulho, e sobretudo para que eu me permitisse amar e admirar minha mãe da forma preta e pobre como ela é. Eu demorei quase trinta anos pra amar e admirar minha mãe preta e pobre porque ela personifica o que é considerado fracasso numa sociedade desigual: a mulher negra, pobre e periférica que se ocupa do trabalho doméstico.
A desigualdade também sequestra nossa possibilidade de amar". (Xênia Mello)